LGBTIfobia e pandemia: um retrato de resistência e luta

LGBTIfobia e pandemia: um retrato de resistência e luta

Dossiê apresenta números de assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020 e mostra que ainda somos o país que mais assassina LGBTIs 

Por Fernanda Alcântara*

A epidemia do coronavírus já tem mais de um ano, figuram as notícias, não só por sua letalidade, mas na maneira como afetou as relações no cotidiano. Destaca-se, ainda, a dificuldade de organizar estratégias de enfrentamento eficaz à Covid-19, em um momento que o direito à vida segue ameaçado e, neste sentido, a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (LGBTIs) segue sendo ainda mais prejudicada nestas relações.

O Brasil segue sendo o país que mais assassina pessoas travestis e transexuais do mundo. Na luta contra transfobia, a travestifobia, o transfeminicidio e outras violências diretas e indiretas contra a população LGBTI, as informações são ferramentas indispensáveis na hora de criar alternativas e alcançar uma oposição eficaz em todo o ciclo da violência transfóbica da sociedade.

Desde 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade do Código Internacional de Doenças (CID), a data de 17 de maio é lembrada como Dia Mundial de Combate à Homo-lesbo-transfobia. Mais de 30 anos depois, o Brasil figura em 1º lugar no ranking dos assassinatos de pessoas trans no mundo, com números que se mantiveram acima da média.

Estes números são ainda piores se for considerada o alto índice de subnotificação e ausência de dados governamentais. “Estamos em 2021 e o Estado brasileiro não tem dados sobre assassinato de pessoas trans ou violência nacional. De acordo com o levantamento do Atlas da Violência do ano passado, apenas 11 estados tinham esses números sobre violência contra pessoas trans, mas eram dados extremamente subnotificados e insuficientes, e traziam pouquíssimos elementos para entender a dinâmica dessa violência” conta Bruna Benevides, Secretária de Articulação Politica da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

                                                          Bruna Benevides, da ANTRA. Foto: Revista Híbrida

Segundo dados da ANTRA, em 2020 a pandemia da Covid-19 impactou drasticamente a vida das pessoas LGBTIs. Dados preliminares do projeto da ANTRA revelam que 94,8% da população trans afirmam terem sofrido algum tipo de violência motivada por discriminação devido à sua identidade de gênero. Quando perguntadas sobre suas principais necessidades, o direito ao emprego e renda aparece com 87,3%, seguido de acesso à saúde (em termos gerais e, também, em questões específicas de transição), educação, segurança e moradia. Além disso, 58,6% declarou pertencer ao grupo de risco para a Covid-19.

Política genocída

A naturalização do projeto de marginalização de LGBTIs não é uma novidade para o governo Bolsonaro, que já direcionava mensagens de ódio enquanto ocupava cargo parlamentar. Entretanto, “as poucas políticas públicas da época ou que estavam em desenvolvimento foram excluídas ou deixadas de escanteio” durante a pandemia, como lembra Benevides.

As violências, de vários tipos, ampliaram-se de forma assustadora nos últimos anos, em especial depois de 2018. “Os principais desafios são a falta de políticas públicas específicas para enfrentar os impactos da pandemia junto às especificidades da população LGBTI. Estas pessoas são socialmente isoladas do convívio comunitário e acabam tendo que desenvolver a própria comunidade; mas a solidão das pessoas LGBTI, muitas vezes, implica o um isolamento compulsório por conta da LGBTIfobia, trazendo um grande impacto para a saúde mental, além da discriminação em si”, explica a Secretária da ANTRA.

Neste sentido, outro ponto levantado por Benevides é a vulnerabilidade à qual estas pessoas estão sujeitas, já que normalmente são pessoas que começam a trabalhar muito cedo, saem de casa expulsas pela família, e que não encontram acolhimento, seja na escola ou na sociedade como um todo. “A dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho para pessoas não normativas acaba gerando empobrecimento, principalmente em pessoas negras especialmente e periféricas, mas também mulheres trans, travestis pessoas do gênero feminino no geral”.

Assim, o cenário de instabilidades que já era precário acabou se acirrando ainda mais. “Na esfera pública, o que acaba parecendo é que as nossas vidas não importam, que elas não valem para serem reconhecidas dentro do Estado Democrático de Direito ou dentro de um processo civilizatório. A nossa cidadania não é reconhecida. E isso também traz impactos negativos”, argumenta Benevides. Por isso, ela “Não à toa foi identificado um aumento desproporcional durante a pandemia de violência contra a comunidade LGBT, mas especialmente contra travestis e mulheres trans.”

O dossiê “Assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020“, realizado pela ANTRA, traz dados e reflexões sobre o aumento das violências contra as pessoas LGBTI, que se tornaram ainda mais graves com a pandemia da Covid-19.

Em resistência à política de morte do Governo Federal, o que se observou foi a luta por maior representatividade na participação políticas por parte das pessoas LGBTIs. Em 2020, a ANTRA conseguiu mapear em 25 estados, 294 candidaturas pelo Brasil, sendo 30 candidaturas coletivas e apenas 2 para prefeitura e 1 para vice-prefeitura. Entre estas temos 263 travestis e mulheres trans, 19 homens trans e 12 candidates com outras identidades trans. O aumento representa um salto de 226%, em relação a 2016 e resultou em 30 Candidaturas Trans Eleitas em 2020.

“Além da representação, temos pensado em construir quadros políticos que se empenhem em levar adiante a construção coletiva que esses movimentos já têm pautado há tanto tempo no Brasil. Acredito que temos rompido com uma lógica que sempre colocava as pessoas LGBTI para apoiar outras candidaturas, agora estamos nos colocando no protagonismo. Termos pessoas legislando e atuando na política institucional em prol dos nossos direitos e não mais dependendo exclusivamente de aliados é importante, entendemos que chegou o momento”, ressalta Benevides.

Estimativa de vida e violência

Um dos dados mais alarmantes sobre a violência física e simbólica da população LGBTI ainda se figura a respeito de suas perspectivas de futuro. A expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos, menos da metade do brasileiro médio, que é de 76 anos, enquanto ser negra, mulher trans ou travesti, periférica ou favelada, do interior, faz esta média cair.

Pensar os corpos trans envolve não somente suas identidades de gênero, mas analisar que estes são corpos que também são negros, gordos, de pessoas com deficiência, intersexo, pessoas vivendo com HIV+ e todas as outras identidades que estes podem carregar. São marcadores que expõem ao risco aumentado de violência, principalmente ao assassinato.

“Sobre estimativa de vida é importante ressaltar que são diversos fatores levados em consideração a violência e diversos fatores”, lembra Bruna. O cruzamento de marcadores como leitura social, expressão e identidade de gênero, orientação sexual, classe social e raça denunciam este cenário: em 2020, dentre os casos analisados nos quais foi possível identificar a identidade racial da vítima, 78% eram travestis/mulheres trans negras.

“A estimativa de vida da população brasileira em geral irá diminuir em dois anos por causa da pandemia, e observamos também que no caso de pessoas trans esse impacto pode ser ainda maior. É importante ressaltar que grupos visto como “minorias” acabam tendo uma expectativa de vida menor e não seria diferente no caso das pessoas trans. Esta média de 35 anos é móvel, vai variando de acordo com o acesso ou não à políticas sociais e direitos”, complementa.

A resistência como única saída

Para mudar este quadro, a atuação em diversas frentes de modo coordenado se torna essencial, principalmente quando começamos a entender e contabilizar populações LGBTQI+, conhecer suas disposições territoriais, focar campanhas e políticas de prevenção a partir de suas territorialidades e incrementar, tanto a capacidade quanto a qualidade de atendimento às vítimas em todas as delegacias, dada a escassez de delegacias especializadas.

A ANTRA encaminhou um documento contendo um panorama ampliado sobre a situação das pessoas LGBTI+ durante a crise sanitária do coronavírus, além de uma série de recomendações ao relator independente para a proteção contra a violência motivada por orientação sexual e/ou identidade de gênero da Organização das Nações Unidas (ONU). Além disso, a entidade atua no monitoramento de ações em prol da população trans, lembra Benevides.

“Um dos maiores desafios é tentar construir uma agenda de forma coletiva, mas entendendo as peculiaridades de cada região. Trabalhamos numa perspectiva da construção de um quadro de luta organizada para garantir que não hajam retrocessos; para enfrentar o processo de vulnerabilidade e precarização; para enfrentar os índices de violência e garantir acesso aos direitos civis sociais e políticos para todas as pessoas, com um olhar interseccional e atento àqueles grupos que estão mais ainda na invisibilidade.”

Embora a conjuntura seja desfavorável, ela faz uma reflexão atenta às perspectivas da população LGBTI. “Vemos uma guinada à direita, não só da política institucional mas da própria população, mas que sempre teve um posicionamento conservador com algumas pautas, especialmente sobre a sexualidade e à liberdade do corpo. Numa perspectiva a curto e médio prazo, não vejo nenhuma mudança”.

Benevides ressalta que, em 2021, a fim de dinamizar e fortalecer a divulgação dos dados, a ANTRA pretende provocar mais discussões com a publicação de boletins bimestrais. “Lançaremos um boletim no dia 13 de maio referente a janeiro e abril do primeiro quadrimestre em que encontramos pelo menos 60 pessoas trans mortas neste período: 56 assassinados e quatro suicídios. É preocupante porque se compararmos com os Estados Unidos, que tem uma população muito maior do que a nossa, eles tiveram 19 casos”.

O relatório da ANTRA, além de trazer informações, aponta que a saída não é apenas sobre responsabilização, mas o quanto a sociedade está disposta a superar vocabulários, práticas e pensamentos LGBTfóbicos. “Precisamos de muita luta, e muita resistência, coletivamente construir alianças para avançar. Mas eu gostaria de encerrar com uma mensagem positiva: apesar das dificuldades, os movimentos sociais têm sido os responsáveis por garantir que grande parte da nossa comunidade não passe fome através da distribuição de alimentos, com a organização de mutirões para apoio jurídico e também psicológico, distribuição de materiais de prevenção” relata Benevides.

Para ela, é importante ressaltar que a luta dos movimentos sociais têm sido importantíssima para comunidade LGBTI. “[Este é] um chamado para que as demais pessoas que não estão organizadas coletivamente possam vir a agregar a este movimento e fortalecer ainda mais a nossa luta. Nós não gostaríamos de ter que lutar por questões que ainda são muito básicas, mas temos uma urgência enorme e uma sede de justiça. O momento atual exige que as pessoas se posicionem e tomem o seu lugar nessa luta, que não é só das instituições da sociedade civil, mas de toda a comunidade e que, individualmente, todas e todos também têm um papel fundamental para a construção desse processo”, conclui.

Este ano no dia 17 de maio, lembrado como Dia Mundial de Combate à Homo-lesbo-transfobia um conjunto de movimentos populares da cidade e do campo, articulam ações simbólicas de luta e denúncia pela vida, pela vacina para todas, todos e todes e o direito ao trabalho, com o lema: 17M pela Vida, Vacina e Trabalho.

*Fernanda é jornalista e integrante do Setor de Comunicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)


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